sexta-feira, 29 de maio de 2009

Acalanto

Você dorme 
e eu, encantado, velo.
Não imagina o bem enorme,
o quanto te quero
meu coração se torce, disforme,
ao ver teu rosto, tão belo...
e te apelo:
não acorde, e que se forme
entre nós inseparável elo:
Você, dorme;
eu, encantado, velo.

Piruetas

- O que é isso

tão gostoso?

É teu nome

fazendo piruetas

no céu 

da minha boca.

Querências

Quero ao menos uma nesga
do teu meio seio meio vesgo
e o perfil da tua coxa
contra a luz.
Eu quero passar semanas sem dormir
sonhando com só uma noite insone
Eu quero vários nãos
e apenas um sonoro sim
Eu quero a expectativa de te ver sair
e um beijo de ficar com a perna bamba
Eu quero sentir a vergonha da impotência 
e a paz de ver dar certo
Eu quero o calor de muitos suores
mais a brisa, quando eu abrir a janela
e a curva do osso do teu quadril
brilhar à luz da Lua.

Ss

Suscetibilidades são lençóis bordados à mão

Solidão é o tuaregue olhando a lua

Semibreve é uma abelha no verão

Semifusas são várias com mais pressa

Sensaborria é uma vila com sol a pino

Sinopse é o ciúme que assalta no trem vazio

Sibila é xícara larga, de porcelana fina

Sustento é um chapéu que esconde a calva

Senilidade eu não sei bem

O Boi

Tinha um passante

um desgarrado boi

sem ponto p'ra bater

sem programa pr'assistir

sem pai p'ra tirar da forca

(sem até bagos p'ra mostrar

pr'uma vaca mais jeitosa)

P'ra que correr?

Então


Eis um passante

um desgarrado boi

que ninguém sabe p'ra onde vai

-que ele só passa

que ninguém sabe onde dorme

-que ele não pára

que ninguém sabe se tem dono

-que ele é só um passante

um desgarrado boi.

Olhando tudo p'ra contar p'ra Deus

Saudade

Eu nunca fiquei num cais

enxugando os olhos, dando adeus.

Talvez seja só o que falta,

já que há em algum lugar no peito

um apito de navio distante

- melancólico e grave -

já tem teu rosto virando vulto

se perdendo na neblina,

e desaparecendo

na imensa curvatura da Terra.

Certezas

Se eu soubesse dançar

eu te convidava


Se eu soubesse beber

eu me embriagava


Se eu soubesse roubar

eu te roubava


Se eu soubesse jogar

eu me jogava


Se eu soubesse nadar

eu me afogava


Se eu soubesse viver

eu não ficava

aqui fazendo versos.

Poema Branco

Quero ao menos uma nesga

do teu meio seio meio vesgo

e o perfil da tua coxa

contra a luz.

E distraídos, passeando,

no meu peito os teus pés nus.

Quando não tem

ninguém

olhando.

Palavras

Existem tantas palavras

fazendo barulho em minha cabeça!

Mas, sei, elas não vão se calar

enquanto eu não juntá-las

d'um jeito que elas gostem.

E terão que ser tão bem arrumadas

que, se ditas em voz alta,

serão aplaudidas

tanto, e tanto e tanto,

que nenhum mosquito

-a um metro e meio do solo-

sobreviverá.

Buñuel

Eu não quero essa paz que grita nos ouvidos da gente

quero ver um milagre

bastante eloqüente

água virar vinho

e então vinagre

Jogar na salada

d'um jantar que não vem

ao lado d’uma flamenca nua

no Caminho de Compostela,

na estrada

debaixo do céu

perdido sem lua.

Palavra

Tua palavra é o que espero

com tamanha sede

com tamanha sanha

que qualquer coisa menos

que tua palavra

a tua, só a tua, a tua somente

e nenhuma outra (que o desejo é tanto

que só uma estrofe não pode contê-lo)

é o que espero, ansioso e tenso

e se não vem logo, penso

que nem adianta mais que chegue.

E se chegar e nada disser?

Melhor que não venha.

E se não vier...

melhor que não...

não o que? Não sei

melhor não

melhor

não

Preleção

O café esfria.

Para que tal não acontecesse

a temperatura ambiente

deveria ser de aproximadamente

80 graus centígrados


Mas, aí...

ele pareceria frio.

Esquentá-lo-íamos a 130 graus

e ele acabaria por esfriar.

Se subíssemos então

a já citada temperatura ambiente

para 130 graus,

ele não esfriaria.


Mas aí,

como já vimos,

ele, de novo, pareceria frio.

Continuando deste jeito

supondo que agüentássemos o calor

a xícara acabaria derretendo

e não teríamos mais café nenhum.


Já o sorvete,

este derrete.

Depois

Foi-se tudo.

De nada, nem um pouco

Ficou talvez o ouvido mouco 

a teu lábio mudo

Ficou talvez um olhar

deixado por descuido

Mas não, o procurei em toda a parte

e até ele também foi

Falta de arte

de quem mal parte e pior reparte

Ficou até um gosto de beijo

Mas, honestamente, até doeu

Pois pelo que lembro, pelo que vejo,

pode mesmo nem ser teu.

Brooks


Nos olhos de Louise Brooks a Vida passou, parou e fez pouso.

Depois se cansou, se entediou e foi trocada por gin.


Tentei, por fastio, tentar encontrar

alguém com os olhos tão olhos que só os da Brooks


Achei os Dela, cujo nome guardo

costurado em fios d’ouro

na barriga de um sapo.

Que engulo.

Dia sim, dia não.

Com Esmero

Com esmero desusado

grudei com goma arábica

um retrato de teus olhos

por dentro de minhas pálpebras.

Para que em cada beco escuro

em cada pavor noturno

ou qualquer fantasma que me ronde

eu possa me guiar de olhos fechados.