
Eu sei que você me lê.
Sempre me leu como quem lê
uma bula de um remédio que faz mal
que não entende e o toma mesmo assim.
Mas eu sei que você me lê.
Suscetibilidades são lençóis bordados à mão
Solidão é o tuaregue olhando a lua
Semibreve é uma abelha no verão
Semifusas são várias com mais pressa
Sensaborria é uma vila com sol a pino
Sinopse é o ciúme que assalta no trem vazio
Sibila é xícara larga, de porcelana fina
Sustento é um chapéu que esconde a calva
Senilidade eu não sei bem
Tinha um passante
um desgarrado boi
sem ponto p'ra bater
sem programa pr'assistir
sem pai p'ra tirar da forca
(sem até bagos p'ra mostrar
pr'uma vaca mais jeitosa)
P'ra que correr?
Então
Eis um passante
um desgarrado boi
que ninguém sabe p'ra onde vai
-que ele só passa
que ninguém sabe onde dorme
-que ele não pára
que ninguém sabe se tem dono
-que ele é só um passante
um desgarrado boi.
Olhando tudo p'ra contar p'ra Deus
Eu nunca fiquei num cais
enxugando os olhos, dando adeus.
Talvez seja só o que falta,
já que há em algum lugar no peito
um apito de navio distante
- melancólico e grave -
já tem teu rosto virando vulto
se perdendo na neblina,
e desaparecendo
na imensa curvatura da Terra.
Se eu soubesse dançar
eu te convidava
Se eu soubesse beber
eu me embriagava
Se eu soubesse roubar
eu te roubava
Se eu soubesse jogar
eu me jogava
Se eu soubesse nadar
eu me afogava
Se eu soubesse viver
eu não ficava
aqui fazendo versos.
Quero ao menos uma nesga
do teu meio seio meio vesgo
e o perfil da tua coxa
contra a luz.
E distraídos, passeando,
no meu peito os teus pés nus.
Quando não tem
ninguém
olhando.
fazendo barulho em minha cabeça!
Mas, sei, elas não vão se calar
enquanto eu não juntá-las
d'um jeito que elas gostem.
E terão que ser tão bem arrumadas
que, se ditas em voz alta,
serão aplaudidas
tanto, e tanto e tanto,
que nenhum mosquito
-a um metro e meio do solo-
sobreviverá.
Eu não quero essa paz que grita nos ouvidos da gente
quero ver um milagre
bastante eloqüente
água virar vinho
e então vinagre
Jogar na salada
d'um jantar que não vem
ao lado d’uma flamenca nua
no Caminho de Compostela,
na estrada
debaixo do céu
perdido sem lua.
Tua palavra é o que espero
com tamanha sede
com tamanha sanha
que qualquer coisa menos
que tua palavra
a tua, só a tua, a tua somente
e nenhuma outra (que o desejo é tanto
que só uma estrofe não pode contê-lo)
é o que espero, ansioso e tenso
e se não vem logo, penso
que nem adianta mais que chegue.
E se chegar e nada disser?
Melhor que não venha.
E se não vier...
melhor que não...
não o que? Não sei
melhor não
melhor
não
Para que tal não acontecesse
a temperatura ambiente
deveria ser de aproximadamente
80 graus centígrados
Mas, aí...
ele pareceria frio.
Esquentá-lo-íamos a 130 graus
e ele acabaria por esfriar.
Se subíssemos então
a já citada temperatura ambiente
para 130 graus,
ele não esfriaria.
Mas aí,
como já vimos,
ele, de novo, pareceria frio.
Continuando deste jeito
supondo que agüentássemos o calor
a xícara acabaria derretendo
e não teríamos mais café nenhum.
Já o sorvete,
este derrete.
De nada, nem um pouco
Ficou talvez o ouvido mouco
a teu lábio mudo
Ficou talvez um olhar
deixado por descuido
Mas não, o procurei em toda a parte
e até ele também foi
Falta de arte
de quem mal parte e pior reparte
Ficou até um gosto de beijo
Mas, honestamente, até doeu
Pois pelo que lembro, pelo que vejo,
pode mesmo nem ser teu.
Depois se cansou, se entediou e foi trocada por gin.
Tentei, por fastio, tentar encontrar
alguém com os olhos tão olhos que só os da Brooks
Achei os Dela, cujo nome guardo
costurado em fios d’ouro
na barriga de um sapo.
Que engulo.
Dia sim, dia não.
Com esmero desusado
grudei com goma arábica
um retrato de teus olhos
por dentro de minhas pálpebras.
Para que em cada beco escuro
em cada pavor noturno
ou qualquer fantasma que me ronde
eu possa me guiar de olhos fechados.